sexta-feira, 27 de março de 2009

Amor e coragem: será que isso basta para criar um filho sem pai?

Mãe solteira

Por Fernando Puga • 26/11/2007

Coragem e amor de mãe são dois elementos que valem por tudo. Ou o que mais moveria um número cada vez maior de mulheres, sozinhas, a capitanear, contra a maré, uma embarcação de filhos lutando contra as ondas da solidão, dos traumas emocionais e das inseguranças? Mas o segredo desse navio das mães solteiras, que singra com braveza mares, por vezes, turvos, é um combustível que ninguém ali dentro sabe ao certo como funciona, mas conhece muito bem a sua força: coração de mãe.
Há exatos vinte anos, a hoje professora de História Jane Negreiros, 40 anos, recebeu uma notícia que seria determinante para todas as escolhas que faria em sua vida dali por diante: estava grávida do ex-namorado. Os dois já estavam separados mais tiveram uma recaída "certeira". "Eu fiquei muito assustada na época. Nós tínhamos uma relação dificílima e, naquele momento específico em que eu descobri que estava esperando a Natália, estávamos muito brigados. Meus amigos, os amigos dele e minha família me ajudaram demais nesse momento, jamais imaginei que seria tão bem apoiada. Ele acabou aceitando registrar a criança, mas voltou para a casa da família em Goiânia. Nunca fez absolutamente nada pela filha e não temos notícias dele há pelo menos dez anos", revela Jane, que na época era vestibulanda e recebeu apoio para estudar e se formar, morando com a filha na casa dos pais. "Minha mãe já estava aposentada e virou mãe de nós duas durante uma época. Não sei o que seria de nós sem eles", reconhece.
Deve-se sempre dar à criança a certeza de que ela tem um pai e que a curiosidade dela sobre ele é legítima e natural. É muito importante evitar que surja idéia de que ele foi embora por sua causa ou então de que os atritos entre os pais sejam por sua culpa
Quando era mais nova, Natália, hoje com 19 anos, estudante de Direito, viveu momentos de curiosidade a respeito da identidade e paradeiro do pai. E Jane garante ter sido sempre o mais sincera possível. "Dizia que não sabia onde ele estava, mas quem sabe um dia ele aparecesse, telefonasse. Falava que ele devia estar ocupado, mas para ela não se preocupar porque quem cuidava dela era eu", conta. A psicóloga infanto-juvenil e terapeuta familiar Selma Brando reforça que mães solteiras jamais devam tentar apagar a figura do pai da história de sua filha. "Deve-se sempre dar à criança a certeza de que ela tem um pai e que a curiosidade dela sobre ele é legítima e natural. É muito importante evitar que surja idéia de que ele foi embora por sua causa ou então de que os atritos entre os pais sejam por sua culpa", ressalta ela.
Mas, para muitas mães solteiras - quase sempre também mulheres magoadas -, é difícil calar as próprias feridas. A atriz T. A., 28 anos, mãe do menino P., 7 anos, reconhece a influência de suas mágoas na formação da identidade do pai do menino perante ele. "Não tenho ódio, nem pena. É indiferença. Quando meu filho pergunta, digo que o pai dele sumiu, que foi uma pessoa que passou pela nossa vida, me deixou ele e que de agora em diante somos só nós dois. Costumo dizer que tenho amor em dobro, de pai e de mãe. Se meu filho tiver vontade de conhecer, procurar o pai, não vou embarreirar, mas confesso que não gostaria que eles se conhecessem. Nunca viu a criança, não deu nome, é um desconhecido completo. Teria muita dificuldade em perdoar", reconhece T. Entretanto, a Dra. Selma reforça: "Mesmo sem atuar, esse pai existe, é desse filho e ele tem o direito de conhecê-lo. Por isso, a importância de respostas sempre consistentes e coerentes a respeito deste assunto".
Outra discussão comum é sobre os efeitos que a ausência de um pai poderia causar na formação das crianças, sobretudo dos meninos. A psicóloga americana Peggy Drexler, que lançou no começo do ano o livro "Raising Boys Without Men" (Criando Meninos Sem Homens - Ed. Rodale Press), defende em sua obra que as mulheres são capazes de passar valores como moralidade e masculinidade a um menino, sem a obrigatória convivência com os pais. "Elas têm a oportunidade de criar um tipo diferente de homem, forte e sensível, capaz de entender que as emoções são valiosas", diz ela em seu livro. Dra. Peggy comenta ainda que existe, nos Estados Unidos, uma falsa percepção de que a maior parte dos meninos cresce em famílias com pai e mãe. "A verdade é que 23% dos lares americanos se encaixam nesta categoria. De 1970 para cá, o número de mães solteiras aumentou em cerca de 5 milhões", aponta a psicóloga.
Mas isso não diminui a importância de uma figura masculina para a criação dos pequenos. "Essa falta é sentida e suprida naturalmente. Quando não tem um pai presente, a criança escolhe sozinha um tio, um avô, um amigo da família, um irmão como ícone masculino com quem ter esse vínculo", acrescenta a psicóloga infanto-juvenil Selma Brando. Foi exatamente assim com P., filho da atriz T. A.. Em pequenos atos, o menino já demonstra que elegeu o tio, irmão de sua mãe, como referência masculina. "Ele quer deixar o cabelo crescer como o do tio, usa as tiaras dele, quer ficar parecido. Fico feliz porque meu irmão é um ótimo exemplo de homem honesto, de bom caráter, e ainda é padrinho dele", comenta T.
Orgulhosa por sua missão de ter criado Natália, "uma menina com uma cabeça maravilhosa", sem a ajuda do pai, a professora Jane, no entanto, ressalta a importância do apoio de amigos e família. "Em alguns momentos somos tomadas de uma ilusão de que podemos dar conta de tudo sozinhas. E isso é viver sob uma pressão horrorosa, simplesmente porque é impossível. Não haveria como ter cursado uma faculdade, me formado e começado a trabalhar sozinha com um bebê. Se a Natália estudou, comeu, se moramos num apartamento nosso, se ela está fazendo faculdade é porque meus pais entenderam minha situação e viabilizaram meus estudos, sou muito grata a eles", reconhece. A Dra. Selma ressalta os riscos dessa ilusão de onipotência. "Muitas mães solteiras vêem os filhos como projetos pessoais e depositam neles expectativas com que eles não podem arcar. E acabam compensando a insegurança da solidão na criação com uma dificuldade de impor limites", alerta.
Sociedade matriarcal
Sob o ponto de vista social, o crescimento do número de mães solteiras no Brasil impressiona. Segundo dados do Ministério da Saúde, entre 2002 e 2003, um milhão de mulheres entre 16 e 24 anos deram à luz seus filhos, com pais desconhecidos. Essa informação revela, pelo menos, duas interessantes realidades na opinião da socióloga Isaura de Queiroz, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. "Isso nos reforça, de um lado, a falta de educação sexual, denuncia a escola que está cada vez mais focada para o vestibular e menos focada para a vida, que vai acabar contribuindo com outra dificuldade que é o diálogo sobre o assunto em casa etc. Mas demonstra também, e isso eu acho que é a grande novidade, uma nova mulher que não considera mais um companheiro como condição intransponível para a constituição de uma família. E isso se deve a um mercado de trabalho mais aberto, a uma sociedade culturalmente mais atualizada, que permitiu à mulher essa escolha", comenta Isaura, sem deixar de chamar a atenção para uma sociedade que ainda legitima a ausência do pai, mais do que a da mãe. "Existem homens abandonando seus filhos na barriga de mulheres diariamente, pelo mundo inteiro e isso pode ser considerado até corriqueiro. Mas se uma mulher faz isso, abandona um filho, é crucificada, apedrejada. A sociedade ainda é perversamente matriarcal", conclui.
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